Ana Brusolo Gerbase
Advogada
Pós Graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil pela
Universidade Gama Filho - RJ
10/02/2010
1 INTRODUÇÃO
O reconhecimento das relações homoafetivas, embora em pleno sec. XXI esbarra em preconceitos arraigados, que caminham na contramão dos tempos atuais.
A aceitação das uniões homossexuais é um fenômeno mundial. Em alguns países, se dá de forma implícita, com a ampliação do conceito de família dentro das regras já existentes. Outros países buscam a modificação em seu ordenamento jurídico para reconhecer legalmente as uniões entre pessoas do mesmo sexo.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 projeta a construção de um Estado Democrático de Direito destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Com isso, introduz indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na especial proteção da família, entretanto, se omite quanto às relações homoafetivas, como se fosse possível fingir que elas não existem.
O Direito é uma ciência dinâmica que deve acompanhar as mudanças da sociedade, não podendo silenciar diante das transformações sociais. A mentalidade conservadora existente na grande maioria do legislativo, do judiciário e da sociedade, representa a covardia nacional, impedindo que, tão cedo, tenhamos uma legislação abrangente, assegurando claramente direitos aos conviventes de uma relação homoafetiva, à semelhança das relações heterossexuais.
Enquanto isto, o Judiciário vem reconhecendo as uniões homoafetivas como sociedades de fato, como se os conviventes se unissem, tão somente, com o fim de exercerem uma atividade econômica, e não pelo afeto mútuo e o desejo de constituírem uma entidade familiar baseada nos deveres de lealdade, respeito e assistência recíproca.
A união entre pessoas do mesmo sexo, hoje é uma realidade inegável. O reconhecimento destas relações atende a garantia constitucional da unidade familiar, da promoção do bem estar, da igualdade e da dignidade da pessoa humana, envolvendo, ainda, a valorização das identidades individuais e coletivas. Não subsisti qualquer fundamento razoável para se negar aos homossexuais o direito ao reconhecimento das relações afetivas, com todas as conseqüências jurídicas dele advindas.
Na omissão da lei, precisa existir o avanço da jurisprudência para obrigar o legislador a reconhecer as uniões homoafetivas, à semelhança das uniões estáveis já amparadas pela legislação vigente.
2 O RECONHECIMENTO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS NO MUNDO E DENTRO DO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO
Existem países que punem com morte a manifestação da homossexualidade. Outros lhes são indiferentes. Alguns reconhecem direitos aos companheiros homossexuais.
O caminho do reconhecimento das uniões homossexuais é inevitável. O cenário jurídico internacional já apresenta importantes exemplos.
Muitos países já reconhecem as relações homoafetivas, como é o caso da Dinamarca, primeiro país a garantir aos casais homossexuais, direitos semelhantes aos dos casais heterossexuais, inclusive a adoção.
Na Holanda, desde 2001 é possível o casamento. Antes, porém direitos semelhantes aos dos casais heteros, já eram garantidos. Também é possível a adoção.
Suécia, Groenlândia, Israel, Islândia e Hungria, garantem os mesmos direitos.
A Noruega, a partir de janeiro de 2009 admite o casamento entre homossexuais.
A Finlândia, da mesma forma, porém proíbe a adoção de crianças e o uso do nome do parceiro.
Na Alemanha, a partir de 2001, é permitido o registro legal como "parceria de vida".
A Inglaterra permite o registro, mas não concede os mesmos direitos.
Em Portugal existe a proteção legal dos direitos previdenciários, sucessórios e o direito real de habitação, mas não permite a adoção.
Luxemburgo, Itália, Austrália, Andorra, Eslovênia e Nova Zelândia concedem direitos aos parceiros homossexuais.
Na República Tcheca, são garantidos planos de saúde e pensão por morte do parceiro.
Na Suíça, a proteção se deu em 2007 por lei federal. Antes, entretanto, alguns estados já protegiam as relações dos parceiros do mesmo sexo.
O México garante direitos sucessórios e pensão por morte do parceiro, mas não permite a adoção de crianças.
Na Argentina, Buenos Aires reconhece direitos, mas não permite o casamento nem a adoção de crianças.
Nos Estados Unidos, 10 dos 50 Estados garantem direitos às uniões homoafetivas.
Na França, existe o PACS - Pacto Civil de Solidariedade: uma declaração conjunta, registrada em cartório, por duas pessoas, independente se do mesmo sexo ou não, como alternativa para o casamento.
A União Européia se empenha em tornar possível o casamento homossexual:
"O Parlamento Europeu pediu que os países da União Européia permitam o casamento de homossexuais. Em harmonia com essa recomendação, exortou os países da União Européia a abolirem a discriminação de homossexuais e deixarem de penalizá-los. Condenou em particular a Grã-Bretanha que, a pretexto de evitar o homossexualismo, vem promovendo restrições aos direitos dos cidadãos em várias áreas. Neste sentido, o Parlamento Britânico amenizou as limitações, reduzindo a idade consentida para relações homossexuais de 21 anos para 18 anos."
Na Bélgica, o casamento já é possível desde 2003 e a adoção, desde 2005.
Na África do Sul, tanto o casamento quanto a adoção são reconhecidos, assim como na Espanha e no Canadá.
No Brasil, como relata Maria Berenice Dias :
"No Brasil, é constrangedor o silêncio. O projeto de Lei 1.151, regulamentando a parceria civil registrada, data de 1995 e está emperrado no Congresso Nacional desde então, sem qualquer chance de ser aprovado. Aliás, trata-se de legislação que já se encontra defasada, pois os direitos que pretendia assegurar não mais correspondem aos anseios da comunidade LGBTT. A própria Justiça confere direitos de mais amplitude. A única referência legal que existe é a feita pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que define família como uma relação íntima de afeto independente da orientação sexual."
À frente do silêncio do legislador, entretanto, algumas entidades, através de atos próprios, já deliberam sobre o assunto suprindo tal omissão, como é o caso da Previdência Social que, através da Instrução Normativa no. 25/2000 concede benefícios aos companheiros homossexuais.
O Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1.652/2000, autoriza as cirurgias de transgenitalização e o Ministério da Saúde, através da Portaria 1.707/2008, regulamenta estas cirurgias pelo SUS - Sistema Único de Saúde.
O Conselho Nacional de Imigração, pela Resolução Normativa 77/2008 dispõe sobre os critérios para concessão de visto temporário ou permanente, ou de autorização de permanência ao companheiro, em união estável, sem distinção de sexo.
A Superintendência de Seguros Privados do Ministério da Fazenda, através da Circular 257/2004, regulamenta o direito do companheiro ou companheira homossexual à percepção de indenização no caso de morte do outro, na condição de dependente preferencial da mesma classe dos companheiros heterossexuais, como beneficiário do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre, ou por sua Carga, a Pessoas Transportadas ou não - Seguro DPVAT.
A Corregedoria do Tribunal de Justiça do RS alterou a consolidação normativa notarial registral, permitindo o registro das uniões estáveis, independente da identidade ou oposição de sexo. Isto também vem ocorrendo em outros Estados.
A Procuradoria Geral da República, através da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF/178 • pede que casais homossexuais tenham os mesmos direitos dos companheiros em uniões estáveis. (Já existe uma ADPF, de no. 132, no mesmo sentido, proposta pelo Governo do Rio de Janeiro).
Sobre o mérito da ação, a Procuradoria Geral da República defende a tese de que se deve extrair diretamente da Constituição de 1988, notadamente dos princípios da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), da igualdade (artigo 5º, caput), da vedação de discriminações odiosas (artigo 3º, inciso IV), da liberdade (artigo 5º, caput) e da proteção à segurança jurídica, a obrigatoriedade do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.
A Ação tramita no Supremo Tribunal Federal, tendo o Ministro Gilmar Mendes determinado a aplicação do rito abreviado, previsto na Lei. 9.868/99, em função da relevância da matéria.
Percebe-se, assim, alguns avanços no sentido do reconhecimento das uniões homoafetivas garantindo alguns direitos aos parceiros homossexuais.
As leis existem. São regras. Os princípios são valores. É com base nos valores que se deve olhar para todas as formas de relações familiares.
3 CONSEQUÊNCIAS DO NÃO RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR
Não reconhecer as uniões homoafetivas como entidades familiares é negar direitos aos parceiros que, à semelhança dos casais heterossexuais, buscam constituir família baseados nos deveres da lealdade, respeito e assistência mútuos.
As relações homossexuais, assim como as heterossexuais, podem consubstanciar-se em unidades afetivamente comprometidas e estáveis. Havendo união pública, contínua e duradoura, o fato merecerá a proteção normativa.
No Brasil, muitos Juízes das Varas de Família, onde as ações são propostas, declinam de sua competência enviando os processos às Varas Cíveis, consolidando a discriminação existente, ao tratar as relações homoafetivas como sociedades de fato e não como entidades familiares.
Entendem os magistrados, nestes casos, que a união se deu tão somente com o fim de exercerem uma atividade econômica e não pelo afeto mútuo.
Com o fim da sociedade, dividem-se os haveres e toda uma vida de afeto em comum se encerra num balanço patrimonial.
Negar direitos não impedirá a constituição das uniões homoafetivas, pois, à semelhança dos demais casais, é o afeto que une os parceiros e que gera os efeitos jurídicos.
Se existe uma relação de afeto, assim como acontece nas relações heterossexuais, estas devem estar sob o amparo legal.
Construir uma vida ao lado de um parceiro, com dedicação, participação, interesse, cuidado, amparo, apoio, amor, dividindo e somando esforços, inclusive materiais, no que diz respeito ao patrimônio, não pode, simplesmente, ser considerado um negócio comercial. Trata-se de uma união permeada de sentimento, amor, carinho, e como tal deve ser respeitada e protegida como verdadeira entidade familiar.
Nas relações heterossexuais, com a morte de um cônjuge abre-se a sucessão e, o outro, como herdeiro legítimo, participa, em determinados casos, na sucessão, concorrendo com os filhos, além do direito à meação e ao direito real de habitação, bem como os incontroversos direitos à pensão e demais tipos de benefícios.
Assim, de acordo com a ordem de vocação hereditária prevista no art. 1829 do Código Civil, herdam: a) os descendentes em concorrência com o cônjuge, dependendo do regime em que o casamento se deu; b) os ascendentes, também em concorrência com o cônjuge e independente do regime de bens; c) o cônjuge; d) os colaterais até o 4º. Grau.
As classes são sucessivas, de forma que o grau mais próximo exclui o mais remoto. Não existindo parente sucessível, a herança é transferida para o Estado.
A Lei 8.971/94 concedeu a qualidade de herdeiro ao companheiro da união estável, com preferência sobre os colaterais e desde que não houvesse descendente e ascendente do de cujus.
No caso das relações homoafetivas isto não se aplica. Os parceiros homossexuais não têm qualquer direito garantido neste sentido.
O companheiro que manteve com outro uma convivência contínua e duradoura, de afeto, solidariedade e lealdade, fica sem qualquer direito à herança daquele que faleceu. Conseguirá, em Juízo, apenas a meação dos bens adquiridos durante a relação, em decorrência do reconhecimento de uma sociedade de fato, ou, eventualmente, por força de um testamento.
O restante dos bens será partilhado entre os familiares do falecido. Familiares estes, que se beneficiarão mesmo tendo rejeitado o falecido ao longo de sua vida, em razão da sua orientação sexual, como muito se vê em grande parte dos casos. Situação ainda pior, acontece no caso de não haver qualquer herdeiro e a herança é declarada vacante, passando à propriedade do Estado.
No caso de doença incapacitante (temporária ou permanente), um não poderá ser curador do outro, se necessário for, em processo de interdição, não podendo, neste caso, tomar decisões pertinentes à administração da vida, ao tratamento do enfermo e até no que se refere à doação de órgãos. Tal função será exercida por um familiar que sequer participou de sua vida, dos momentos bons e ruins, que desconhece seus anseios, desejos e medos.
Muitos outros direitos ainda são vetados, como direito a alimentos, direitos contratuais e também na esfera tributária.
Além de privar os parceiros de direitos importantes, o não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo alimenta e legitima a homofobia.
É necessário que o respeito às diferenças prevaleça e que os princípios norteadores permeiem, não só as relações homoafetivas, mas todas as relações estabelecidas com base na afetividade.
4 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Os princípios constitucionais são os que formam o sistema jurídico e se constituem em deveres de respeito e de promoção pelo Estado. Por serem normas de forte conteúdo axiológico, são concretizados por meio dos direitos fundamentais.
4.1 A Dignidade da Pessoa Humana
O princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado pela Constituição de 88, atua como elemento estrutural dos próprios direitos fundamentais assegurados pela Constituição.
O homem, como ser humano tem que ser respeitado, simplesmente por si, não podendo sofrer tratamento discriminatório, ou ser ignorado como pessoa, nem ser privado dos meios necessários a tal condição, como a sua sobrevivência física, moral, psicológica, afetiva, humana, o seu desenvolvimento e a possibilidade da realização plena de suas potencialidades.
Negar direitos a uma pessoa, em razão da sua orientação sexual, além da discriminação, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Ignorar a condição pessoal do individuo, constitutiva da sua identidade pessoal, onde se inclui a orientação sexual, seria ofender o princípio da dignidade humana.
Segundo Gustavo Tepedino :
"Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do pár. 2o. do art. 5o, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento."
Apesar das bases serem sólidas, a tarefa é árdua. O princípio da dignidade humana ainda não se materializou para a grande maioria da população.
A luta pela defesa e proteção da dignidade da pessoa humana vem se consolidando, cada vez mais, numa ordem crescente, tornando-se uma referência ética, levando a crer que é possível um mundo mais fraterno, mais solidário, mais tolerante às diferenças que nunca deixarão de existir.
Espera-se que as leis que consagram os direitos humanos, com seus mecanismos de defesa, possam impedir retrocessos e arbitrariedades.
4.2 A Liberdade de Escolha
O direito à liberdade é uma garantia Constitucional. O Estado deve garantir o máximo de liberdade de escolha para todos, sem exceção.
O Estado Democrático de Direito promete aos indivíduos a promoção positiva de suas liberdades. A vida particular do indivíduo, não admite qualquer restrição. Cada um tem o direito de exercer livremente sua personalidade, de acordo com seus desejos.
É fundamental a liberdade na escolha do parceiro para a constituição de uma família, pois, é com esta família que o individuo vai estabelecer laços profundos e duradouros. É esta família que vai amparar, apoiar e estar presente nos bons e maus momentos da vida.
O Estado não pode interferir na vida do indivíduo a ponto de proibir o exercício de suas livres escolhas.
Segundo Sérgio Gischkow Pereira:
"(...) Qualquer restrição a esta liberdade deve estar assentada em lei que, para isto, apresenta razões relevantes e constitucionalmente válidas, assentadas, em geral, no direito de terceiros ou no interesse coletivo. Partindo dessas premissas, o direito geral de personalidade não permite a influência do Estado na vida afetiva do indivíduo, tampouco na sua opção sexual, devendo ser-lhe assegurado o direito de constituir família com pessoa do mesmo ou do sexo oposto; a procriação natural ou assistida; o direito à adoção, ou mesmo o direito de não ter filhos, etc. A proteção da personalidade do individuo pressupõe a liberdade para o seu desenvolvimento segundo a mundividência própria, o seu projeto de vida, as suas possibilidades, constituindo um status negativus que se materializa na defesa contra imposições ou proibições violadoras da liberdade geral de ação."
Assim, toda pessoa tem direito à proteção da liberdade de suas escolhas, desde que não viole direitos de terceiros.
4.3 A Igualdade
Segundo o art. 5º. da Constituição, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
O Pacto dos Direitos Civis e Políticos da ONU, promulgado pelo Presidente da República, através do Decreto no. 592 de 1992 , consagra o direito à igualdade nos artigos 2º., par. 1º. e art. 26, proibindo as discriminações "por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação".
O princípio da igualdade garante inclusive o direito de ser diferente sem sofrer qualquer discriminação por isso, pois vivemos num mundo pluralista, onde a diversidade se torna cada vez maior.
Não basta que as leis estabeleçam o direito à igualdade. Este direito precisa ser exercido e respeitado.
Ser igual não significa ser igual em grau e número, tampouco ser absolutamente diferente. Igualdade significa ser coerente, e com coerência se deve olhar o outro, respeitando, acima de tudo, o direito à sua diversidade.
O direito de igualdade vai muito além do texto constitucional. Hoje vivemos uma realidade onde o casamento deixa de lado a sua finalidade de reprodução, haja vista que, os filhos já não são, necessariamente, frutos do sexo reprodutivo. O casamento - e aqui há que se entender por todas as relações de afeto - busca uma nova comunhão baseada no companheirismo, na convivência harmônica permeada de carinho, atenção e zelo.
Assim, dentro dessa nova concepção e de acordo com uma realidade inegável, o conceito de entidade familiar deve abarcar também as relações homoafetivas, de igual forma, uma vez que poderão sim, constituir seus núcleos familiares, inclusive com filhos, advindos das relações anteriores, ou frutos de inseminação artificial ou, ainda, através das adoções.
5 A ANALOGIA
Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admiti-se, neste caso, a integração mediante o uso da analogia.
Esta regra baseia-se na afirmativa dos romanos: Ubi eadem ratio ibi idem jus (onde houver o mesmo fundamento haverá o mesmo direito), ou Ubi eadem legis ratio ibi eadem dispositio (onde impera a mesma razão deve prevalecer a mesma decisão).
A analogia está prevista no artigo 4º. da lei de Introdução ao Código Civil:
"Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito."
Da mesma forma prevê o artigo 126 do Código de Processo Civil:
"O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais, não as havendo, recorrerá à analogia e aos princípios gerais de direito."
A ausência de proibição legal para o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo abre uma lacuna no direito para uma solução concreta.
Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, desde que preenchidos os requisitos previstos.
Em nenhum momento, porém, o legislador utilizou expressão restritiva de modo a excluir definitivamente a união entre pessoas do mesmo sexo da abrangência legal.
O sistema jurídico pode sim reconhecer estas relações de afeto, mesmo sem a expressa previsão legal. A lacuna normativa não pode servir de obstáculo ao reconhecimento de uma relação jurídica originada de fato social.
O Direito deve acompanhar as transformações sociais. São os casos concretos que constituem novas realidades, inclusive nas relações pessoais.
A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim humana. A interpretação deve ser a que melhor atenda às aspirações da Justiça e da sociedade.
Neste sentido:
"A melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças."
Assim, diante da omissão legislativa aplicam-se, por analogia, as normas que tratam da união estável entre as pessoas do mesmo sexo.
6 AS DECISÕES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Ao analisar a jurisprudência sobre a questão, um dos primeiros julgados reconhecendo direitos sucessórios numa relação homoafetiva vem do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
"União homoafetiva. Possibilidade jurídica. Observância dos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana. Pela dissolução da união havida, caberá a cada convivente a meação dos bens onerosamente amealhados durante a convivência. Falecendo a companheira sem deixar ascendentes ou descendentes caberá à sobrevivente a totalidade da herança. Aplicação analógica das Leis n.º 8.971/94 e 9.278/96. Por maioria, negaram provimento, vencido o revisor."
O reconhecimento das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo encontra respaldo em poucas decisões.
A decisão do TSE sobre o pedido que cassou o registro da candidata à Prefeitura de Viseu, PA, por manter relação homoafetiva com a então prefeita, demonstra o reconhecimento das relações homoafetivas, como entidade familiar por parte da justiça eleitoral, pois, se para restringir direitos se equiparam às uniões heterossexuais, para concedê-los não há que se ter outro entendimento.
Nesta decisão, o Ministro Gilmar Mendes se manifestou da seguinte forma: "em que pese o ordenamento jurídico brasileiro ainda não ter admitido a comunhão de vidas entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, acredito que esse relacionamento tenha efeito na esfera eleitoral".
(...) "É um dado da vida real a existência de relações homossexuais em que, assim como na união estável, no casamento ou no concubinato, presume-se que haja fortes laços afetivos."
(...) "Assim, entendo que os sujeitos de uma relação homossexual (denominação adotada pelo Código Civil Alemão), à semelhança do que ocorre com os sujeitos de união estável, de concubinato e de casamento, submetem-se à regra de inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal".
A 2ª. Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Rio de Janeiro reconheceu a união estável homoafetiva, deferindo o benefício de pensão por morte à companheira. O relator, Dr. Cássio Murilo Monteiro Granzinoli, entendeu da seguinte forma:
"A preferência sexual do indivíduo não deve ser fator de discriminação, sob pena de malferir preceito vigente da Constituição Federal que contempla, dentre outros princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, o objetivo de promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, inciso IV)".
No mesmo sentido, a 1ª. Turma, também decide de igual forma:
"Independentemente da orientação sexual de um ser humano, é mister invocar o respeito devido à sua individualidade, em virtude da citada cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III). Esta (a dignidade da pessoa humana), aliás, é elemento central na sociabilidade que caracteriza o conceito de Estado Democrático de Direito, que promete aos indivíduos muito mais que abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades."
Em outra oportunidade, reitera:
"(...) ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoal (na qual, sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade humana."
Ainda, como ressaltou o eminente Des. José Carlos Teixeira Giorgis, do Tribunal do Rio Grande do Sul, na Apelação Civil nº 70001388982 , in verbis:
"Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevando sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade."
Desta forma, embora amiúde, os Tribunais começam a entender as relações homoafetivas como entidades familiares, demonstrando que é possível vencer preconceitos e discriminações e estabelecer uma sociedade justa e pluralista, como previsto na Carta de 1988.
São essas decisões que, de alguma forma, poderão estimular o Poder Legislativo a normatizar, através das leis, as realidades sociais.
7 CONCLUSÃO
Ainda se vive numa sociedade de discriminações e exclusões.
O preconceito alcança uma diversidade de padrões, quer pela cor, pela classe social, pela estética, pela idade, pelas necessidades especiais, pela crença, pelo nível de escolaridade, pela diversidade sexual - tudo é motivo para discriminação e exclusão em nossa sociedade.
Se determinado indivíduo não se enquadra nos "modelos normais e aceitáveis" - embora ninguém, até hoje, tenha definido, objetivamente, o que vem a ser este modelo padrão de normalidade e aceitabilidade - fica excluído do círculo social, das oportunidades de trabalho e até da convivência familiar.
O homossexual, inclusive, é o excluído mais excluído - da sociedade e também da família que, quase sempre não o aceita, pois não consegue conviver com a diversidade sexual por vergonha, preconceito e discriminação.
Verifica-se uma distância muito grande entre os preceitos constitucionais e a realidade social.
Outros tempos, outras crenças, outros comportamentos.
É assim que se deve olhar o mundo contemporâneo. Transpor os preconceitos e os tabus impostos por um passado conservador.
Um novo sistema ético nos obriga à releitura do passado.
O Direito hoje está muito além das regras positivadas. O Direito hoje tem uma função social e, como tal, é o instrumento eficaz para a construção de uma sociedade mais justa.
O mundo mudou e é preciso mudar com ele. É preciso dar chance à solidariedade, à fraternidade e à justiça, pilares de uma sociedade saudável e harmoniosa.
O Direito tem que acompanhar as mudanças da sociedade, principalmente no campo das relações familiares, a fim de cumprir seu objetivo de manter a paz, a ordem e a segurança da coletividade. A realidade jurídica deve retratar a realidade fática.
Não há mais lugar para a discriminação na sociedade atual. Não se pode viver uma vida de exclusão afastando um ser humano por não estar de acordo com o padrão "normal" criado pelo homem, sob o manto do preconceito.
É preciso acabar com a intolerância que nega ao outro, pela sua diversidade, o respeito à dignidade humana. É hora de se voltar também para o outro e não apenas para si mesmo.
Homossexualidade não se confunde com caráter, com decência, com ser ou não ser ético. Caráter independe da orientação sexual.
É chegada a hora de a sociedade refletir com mais tolerância e aceitar o outro nas suas diferenças, inclusive no que diz respeito à sexualidade.
É preciso que o Judiciário enxergue esta nova realidade, este novo momento que a sociedade vive principalmente no que diz respeito à concepção de família.
Não só o Judiciário, mas a sociedade também deve reconhecer e respeitar a diversidade entre os seres humanos garantindo que sua dignidade e integridade física sejam preservadas, de acordo com os princípios constitucionais.
REFERÊNCIAS
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NEGRÃO, Theotônio; GOUVÊA, José Roberto F. com a colaboração de Luiz Guilherme Aidar Bondioli. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 40ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: uma abordagem psicanalítica. 3ª. ed. ver. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
__________. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
SILVA JUNIOR, Enézio de Deus. A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais. 3ª. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2008.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
Endereços Eletrônicos consultados:
Ana Gerbase Advocacia. Disponível em http://www.anagerbase.adv.br. Acesso em 08. 09.2009.
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